Ciência Educacional em Rede
O Direito Fundamental dos Imigrantes à Educação como Direito Humano: A Realidade Brasileira
1. O direito à educação dos imigrantes postulado na Lei de Migração (2017)
O Estatuto do Estrangeiro1, promulgado durante a Ditadura Militar (1964-1985), regulamentou o direito dos estrangeiros a fim de garantir a segurança nacional e proteger os cidadãos brasileiros. Entretanto, o Estatuto contrariava o Estado Democrático de Direito e não previa uma política efetiva de garantia de direitos aos migrantes. O ordenamento jurídico brasileiro carecia de uma nova de lei que estivesse de acordo com a universalidade de direitos humanos e garantisse direitos às comunidades migratórias.
A fim de regular a política migratória, a Lei nº 13.4452 foi promulgada em 24 de maio de 2017 e revogou o Estatuto do Estrangeiro, trazendo um rol de direitos e garantias aos migrantes. Logo na seção II denominada “Dos Princípios e das Garantias”, o artigo 3º, XI, prevê que a política migratória deverá garantir “acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social”3.
O artigo supramencionado apresenta direitos fundamentais que devem ser ofertados e garantidos aos cidadãos migrantes, entre eles, o direito à educação. O direito à educação é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como direito humano, e acerca da matéria, a ONU estabeleceu o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº4 em 2015: educação de qualidade4.
O ODS nº4 tem como finalidade “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. O ODS nº4 também apresenta a meta 4.5, adaptada pelo Brasil, qual seja:
Até 2030, eliminar as desigualdades de gênero e raça na educação e garantir a equidade de acesso, permanência e êxito em todos os níveis, etapas e modalidades de ensino para os grupos em situação de vulnerabilidade, sobretudo as pessoas com deficiência, populações do campo, populações itinerantes, comunidades indígenas e tradicionais, adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas e população em situação de rua ou em privação de liberdade5.
A meta de o Brasil garantir até 2030 a equidade de acesso, permanência e êxito em todos os níveis de ensino se refere também ao acesso à educação das crianças migrantes, pois estas constituem grupos em situação de vulnerabilidade, considerando a alteração de país, cultura, idioma, escola, e distância dos amigos e familiares.
Assim, é mister analisar os dados referentes às matrículas escolares dos migrantes no sistema educativo brasileiro, tendo como base a postulação do direito à educação no ordenamento jurídico pátrio e no sistema internacional.
2. A positivação do direito fundamental à educação no ordenamento jurídico brasileiro
Após duas décadas de ditadura militar no Brasil (1964-1985), a Constituição Federal6 de 1988 representou o marco da afirmação da democracia e dos direitos humanos. Logo em seu artigo 1º, o texto constitucional prevê que a República Federativa do Brasil se constitui Estado Democrático de Direito e seus fundamentos são: “I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político”7.
Esses princípios constitucionais regem o ordenamento jurídico pátrio e, portanto, a Carta Magna, ao prever o Estado Democrático de Direito
abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais, que ela inscreve, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana8.
Sob tal perspectiva, o Estado Democrático de Direito, previsto no texto constitucional, e pautado nos princípios de legalidade, igualdade e dignidade, será baseado no respeito aos direitos fundamentais, os quais englobam direitos individuais, coletivos, sociais e culturais.
De acordo com Silva9, os direitos fundamentais do homem são dotados de historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade. Historicidade visto que são históricos, modificando-se ao longo do tempo; inalienabilidade sob a justificativa de que são intransferíveis e indisponíveis, pois são previstos em normas constitucionais a todos, sem exceção; imprescritibilidade posto que podem ser exigidos a qualquer tempo; e, por fim, são dotados de irrenunciabilidade, uma vez que podem até não ser exercidos, mas não podem ser abdicados.
Neste viés, o sistema de garantia dos direitos fundamentais tem a finalidade de assegurar proteção social, política e jurídica aos cidadãos, por meio de exigências ao Poder Público na efetividade de tais direitos, para assegurar a observância destes ou a sua reintegração em caso de violação10.
Conforme já mencionado acima, os direitos sociais também são considerados fundamentais, os quais são
prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais11.
A respeito dos direitos sociais, a Constituição Federal estabelece, em seu artigo 6º, que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”12.
Especificamente sobre o direito fundamental à educação, postulado no artigo supramencionado, bem como no artigo 205 e seguintes da Carta Magna, é reconhecido como direito de todos e dever do Estado, a partir do pressuposto de que “a educação como processo de reconstrução da experiência é um atributo da pessoa humana, e, por isso, tem que ser comum a todos”13.
A respeito da sua finalidade, a educação, com base no artigo 205 da CF, deve visar o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da sua cidadania, e a qualificação para o trabalho. Ademais,
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade.
VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.
IX – garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida (grifo nosso)14.
De acordo com o artigo exposto, compreende-se que devem ser garantidos o acesso e a permanência escolar a todos, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se, assim, a qualidade do ensino e a aprendizagem.
Obrigatória, gratuita e universal, a educação parte do pressuposto de que exista uma sociedade democraticamente organizada, respeitando-se direitos e garantias fundamentais. Considerando que o Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito, e possui a cidadania e a dignidade da pessoa humana como princípios norteadores da República, a efetividade do direito à educação é medida que se impõe.
Isto posto, passa-se a analisar o direito à educação no âmbito infraconstitucional.
2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, conhecida por “Estatuto da Criança e do Adolescente”15, dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. O ECA considera como criança a pessoa com até 12 (doze) anos incompletos de idade, e como adolescente a pessoa entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade.
O Estatuto reconhece a criança e o adolescente como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos, sendo responsabilidade da família, da sociedade e do Poder Público a sua garantia.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absolutaprioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (grifo nosso)16.
O texto legal ressalta que os direitos devem ser garantidos a todos, sem discriminação de “nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas”, conforme o artigo 3, parágrafo único17.
Ainda de acodo com o ECA, o Estado deverá assegurar o ensino fundamental obrigatório e gratuito a todos, bem como deverá, de forma progressiva, ampliar a obrigatoriedade e gratuidade do ensino médio, garantindo, assim, a igualdade de condições para o acesso e permanência escolar. O artigo 58 também prevê que o processo educacional deve respeitar os valores culturais, históricos, artísticos de cada criança e do seu respectivo contexto social18.
2.2 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB)
A Lei 9.394/96, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira19, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e, logo no seu artigo 1º prevê que
a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais20.
Entre os princípios da educação, pode-se citar, a título de exemplo: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.
Cumpre ressaltar que a Constituição Federal e a LDB preveem também a necessidade de um Plano Nacional de Educação nos artigos 214 e 87, §1º, respectivamente, cuja análise será realizada a seguir.
2.3 Plano Nacional da Educação (PNE)
O atual Plano Nacional da Educação (PNE) foi aprovado pela Lei nº 13.005/201421 e teve a finalidade de estabelecer metas acerca da educação, em âmbito federal, para o decênio de 2014 a 2024. Ao todo são 20 (vinte) metas que versam sobre a universalização e o acesso à educação da população.
Notadamente a respeito da faixa etária de 12 (doze) a 18 (dezoito) anos, o PNE apresenta a meta 2:
Universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95% (noventa e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada, até o último ano de vigência deste PNE22.
Assim como a meta 3 exposta abaixo:
Universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85% (oitenta e cinco por cento)23.
A partir da leitura das metas destacadas, constata-se que há uma preocupação com a universalização do acesso à educação básica, compreendendo também as crianças e adolescentes que possuem outra nacionalidade. Assim, estes cidadãos também têm seus direitos garantidos na norma positivada, os quais devem ser cumpridos pelo Poder Público.
Diante da análise do direito à educação nas normas de direito interno verifica-se que há convergência entre os documentos, reforçando o direito fundamental à educação e a necessidade de universalização deste direito a todos, sem discriminação de qualquer natureza.
Passa-se a análise do direito à educação no âmbito internacional de direitos humanos.
3 Tratados, Convenções e Declarações de Direitos Humanos acerca do direito à educação dos imigrantes
3.1 Tratados, Convenções e Declarações no âmbito do sistema global de direitos humanos (ONU)
A Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH)24 é o primeiro documento universal elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU), escrito em 1948, marcando a internacionalização dos direitos humanos e a responsabilização dos Estados-parte na proteção e efetivação destes direitos.
Logo no artigo 2, assevera a importância da não discriminação de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. E também estabelece que não deve ser feita nenhuma distinção com base na condição política, jurídica ou internacional do país de origem da pessoa.
Quanto à educação, o referido documento, em seu artigo XXVI, expressa o direito de todo ser humano à educação, a qual será obrigatória e gratuita (no mínimo em relação ao ensino elementar). A educação exposta na Declaração será voltada à manutenção da paz, e orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana, do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais.
Tendo em vista que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não possuía a natureza jurídica de lei internacional, mas sim de recomendação aos Estados-parte na garantia e efetivação dos direitos humanos, esta foi utilizada como fundamento teórico para os próximos tratados que foram elaborados.
Logo em 28 de julho de 1951 a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados25 foi adotada a fim de resolver a situação dos refugiados na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Em relação ao direito à educação, o artigo 22 item 1 da Convenção prevê que “os Estados Contratantes darão aos refugiados o mesmo tratamento que aos nacionais no que concerne ao ensino primário”26. No Brasil, a Convenção entrou em vigor no país em 28.01.1961, a partir de sua promulgação pelo Decreto-lei nº 50.21527.
Nesta toada, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)28, externado por meio da Resolução nº 2.200-A (XXI), foi elaborado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16.12.1966. O Brasil é um dos países signatários do Pacto, o qual entrou em vigor no país em 24.01.1992, a partir de sua promulgação pelo Decreto-lei nº 59129 de 1992.
O tratado, em seu artigo 13, versa sobre o direito de toda pessoa à educação, a qual deverá capacitá-la à participação em uma sociedade livre, além de favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos. Destaca-se também que a educação primária deverá ser obrigatória, acessível e gratuita; já em relação à educação secundária, o Pacto prevê que devem ser adotados meios que possibilitem a sua generalização, acessibilidade e gratuidade; entretanto, este não especifica os anos escolares que estão compreendidos na educação primária, tampouco na secundária.
O Comitê do Pacto supramencionado, ao interpretá-lo, editou o Comentário 13º30, o qual aborda o direito à educação como indispensável para pleitear outros direitos humanos, bem como reconhece a educação como meio que possibilita a participação plena dos cidadãos na comunidade, sem discriminação de qualquer natureza, envolvendo, sobretudo, os grupos vulneráveis.
Ao interpretar o Pacto, o Comitê também expõe que o direito à educação de base atendendo às características fundamentais (disponibilidade, acessibilidade, adaptabilidade, aceitabilidade) estende-se a todos os sujeitos que ainda não atenderam as suas necessidades básicas de aprendizagem, incluindo os não nacionais e independentemente da sua situação jurídica.
Já a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias31 foi adotada pela Resolução 45/158 da Assembleia-Geral, de 18 de Dezembro de 1990. Esta convenção tratou especificamente dos trabalhadores migrantes e no seu artigo 30 estabelece:
O filho de um trabalhador migrante tem o direito fundamental de acesso à educação em condições de igualdade de tratamento com os nacionais do Estado interessado. Não pode ser negado ou limitado o acesso a estabelecimentos públicos de ensino pré-escolar ou escolar por motivo de situação irregular em matéria de permanência ou emprego de um dos pais ou com fundamento na permanência irregular da criança no Estado de emprego32.
Em que pese esta Convenção somente ter sido assinada pelo Brasil e ainda não ter ocorrido sua ratificação, apresenta a positivação do direito à educação dos migrantes como responsabilidade do Estado e prevê que tal direito deve ser reconhecido independente da regularidade da permanência em território nacional.
Especificamente acerca do direito à educação, Estados-parte celebraram a elaboração da Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino33, a qual prevê também o direito de todos ao ensino e a proibição de qualquer discriminação, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião publica ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento.
Também é necessário apresentar, na presente explanação, a Convenção sobre os Direitos da Criança34, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990. Esta prevê a responsabilidade do Estado na oferta da educação, de forma que o acesso seja garantido a todos em igualdade de oportunidades.
Além dos documentos normativos de direitos humanos já citados, é preciso mencionar a Declaração de Hamburgo35 elaborada na 5ª Conferência Internacional sobre Educação de Jovens e Adultos (Confíntea V) realizada na Alemanha em julho de 1997. A citada declaração prevê que a educação é um pressuposto fundamental para a “construção de um mundo onde a violência cede lugar ao diálogo e à cultura de paz baseada na justiça”36.
Por fim, a “Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem”37, elaborada em 1990, em Jomtien, na Tailândia, prevê no artigo 3º, item 4, in verbis:
Um compromisso efetivo para superar as disparidades educacionais deve ser assumido. Os grupos excluídos – os pobres; os meninos e meninas de rua ou trabalhadores; as populações das periferias urbanas e zonas rurais; os nômades e os trabalhadores migrantes; os povos indígenas; as minorias étnicas, raciais e linguísticas; os refugiados; os deslocados pela guerra; e os povos submetidos a um regime de ocupação – não devem sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso às oportunidades educacionais38.
Compreende-se, com base no artigo exposto, que a educação é uma ferramenta potencializadora que permite que os sujeitos participem ativamente da sociedade, de forma crítica e ciente de seus direitos. O sistema educacional deve ser garantido a todos e o acesso deve ser igualitário.
Em suma, diversos tratados e convenções no âmbito do sistema global de direitos humanos foram expostos nesse tópico e, assim, verifica-se que, de forma geral, os documentos evidenciam o direito à educação de todos, sem qualquer discriminação, cuja finalidade é a construção de uma sociedade solidária, com base no respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais.
Agora passa-se à análise do direito à educação no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos.
3.2 Tratados, Convenções e Declarações no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos
No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), entre os Tratados, Convenções e Declarações de direitos humanos que versam sobre educação, pode-se citar a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem39, aprovada na Nona Conferência Internacional Americana na cidade de Bogotá em 1948. A Convenção parte da perspectiva de que toda pessoa é igual perante a lei, independente de sua raça, língua, crença, ou qualquer outra, de acordo com seu artigo 2º40.
O documento normativo prevê, em seu artigo XII, que “toda pessoa tem direito à educação, que deve inspirar-se nos princípios de liberdade, moralidade e solidariedade humana”41. Ademais, a educação deve ser uma ferramenta que possibilita o preparo para uma vida digna, por meio da qual as pessoas aproveitarão os recursos da coletividade e do Estado. Na mesma perspectiva já adotada em outros documentos de direitos humanos, reitera-se a gratuidade da instrução primária e a igualdade de oportunidades a todos.
O Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos, denominado “Protocolo de Buenos Aires”42, assinado em Bueno Aires, em 27 de fevereiro de 1967, o qual passou a vigorar no Brasil através do Decreto Legislativo nº 2 de 1968, também é outro documento cuja análise se faz necessária na presente discussão.
O Protocolo de 196743 estabelece algumas metas que deverão ser atingidas pelos Estados americanos, entre elas, a rápida erradicação do analfabetismo e a ampliação das oportunidades no campo da educação. Em relação aos conceitos de obrigatoriedade e gratuidade, o documento prevê que o ensino, quando ofertado pelo Estado, deve ser gratuito; também prevê o ensino primário como obrigatório para a população em idade escolar e para todas as outras pessoas a quem possa aproveitar. Já o ensino médio deve ser ampliado de forma progressiva, atendendo as necessidades de cada país, bem como o ensino superior deverá ser acessível a todos, atendendo a critérios acadêmicos.
Impende analisar também a Carta Democrática Interamericana44, aprovada na primeira sessão plenária, realizada em 11 de setembro de 2001. A Carta prevê, em seu artigo 16, in verbis:
A educação é chave para fortalecer as instituições democráticas, promover o desenvolvimento do potencial humano e o alívio da pobreza, e fomentar um maior entendimento entre os povos. Para alcançar essas metas, é essencial que uma educação de qualidade esteja ao alcance de todos, incluindo as meninas e as mulheres, os habitantes das zonas rurais e as minorias45.
Verifica-se a finalidade da educação como ferramenta potencializadora das instituições democráticas, promovendo o desenvolvimento humano e a redução das desigualdades sociais. Especificamente no artigo 9, a OEA expõe a necessidade promoção e proteção dos direitos humanos dos migrantes, e o respeito à diversidade étnica e cultural46.
Por fim, a Carta Social das Américas47, aprovada na segunda sessão plenária realizada em 4 de junho de 2012 em Cochabamba, na Bolívia, ressalta também o direito de toda pessoa à educação, sem qualquer espécie de discriminação, cujos objetivos são:
alcançar maior igualdade, melhorar os níveis de vida, promover o desenvolvimento sustentável, desenvolver o capital humano, reduzir a pobreza, fortalecer as instituições democráticas, transmitir valores cívicos e sociais, formar cidadãos responsáveis e comprometidos com a sociedade e promover a inclusão social48.
A partir da análise dos documentos normativos do sistema global e americano de direitos humanos, constata-se que a educação é vista pelas organizações internacionais de direitos humanos como ferramenta que potencializa a construção de uma sociedade mais justa e democrática, tendo em vista a não discriminação no campo do ensino, e a universalidade do direito à educação. Os objetivos e finalidades se repetem em sua maioria e também estão previstos na Constituição Federal brasileira.
Diante de todo exposto, passa-se à análise dos dados do censo escolar brasileiro referente às matrículas dos migrantes na educação básica.
4. Análise dos dados
O Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (NEPO) desenvolve um grupo de pesquisa intitulado “Observatório das Migrações em São Paulo”, e apresenta um banco interativo no site49 que contém dados referentes aos estudantes imigrantes internacionais matriculados no ensino básico do Brasil.
Busca-se, neste artigo, analisar os dados disponibilizados (com acesso público), a fim de descrever o percurso das matrículas escolares dos imigrantes no território nacional desde 2010 até 2019 e, sobretudo, verificar se houve mudanças significativas após a entrada em vigor da Lei de Migração, Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017.
Quanto ao número de matrículas, verifica-se que este apresentou um crescimento acelerado no começo da década de 2010, passando de 43.400 para 76.404 em 5 (cinco) anos, ocorreu, portanto, um crescimento de 76%. Porém, o crescimento desacelerou a partir do meio da década, visto que o número de matrículas se manteve estável na faixa de 76.000 a 80.000 entre 2015 e 2018.
Após, no fim da década o número volta a crescer, com saltos em 2018 e 2019. Destaca-se o crescimento no ano de 2019, pois em 2018 havia 85.246 matrículas e em 2019 este número aumentou 52,6%, apresentando 130.067 (matrículas). Este foi o maior número de matrículas registrado na base de dados entre os anos 2010 a 2019. Analisando os dados de país de origem, percebe-se que esse grande crescimento é oriundo de países que vivenciaram crises, tais como: Venezuela, Bolívia e Haiti.
Acerca do sexo, percebe-se que o padrão se mantém ao longo de todos os anos, com uma proporção ligeiramente maior de homens do que mulheres. Já a faixa etária dominante é igual em todos os anos, ou seja, entre 5 a 9 anos. Porém, a partir de 2017, percebe-se uma pequena mudança de padrão: a faixa de 5 a 9 anos (maior em todos os anos anteriores) é ultrapassada pela faixa de 10 a 14 anos, que lidera desde então. Em relação à etapa escolar, há um padrão com predominância do ensino fundamental, educação infantil e ensino médio, respectivamente do maior para o menor.
Constata-se também que as regiões brasileiras Sul e Sudeste se mantiveram com o maior número de matrículas em todos os anos, com destaque para o estado e cidade de São Paulo, líder absoluto. Ressalta-se o crescimento nos últimos anos do número de matrículas em alguns estados na região Norte e Centro-Oeste (Amazonas, Roraima, Mato Grosso e Goiás). Uma das hipóteses é o aumento de migrantes sul-americanos, uma vez que esses estados ficam próximos às fronteiras.
Quanto à dependência administrativa, a rede federal teve uma participação irrisória ao longo dos anos, quase irrelevante em comparação com as outras. Até 2015, a rede privada possuía a maior parte dos estudantes imigrantes, seguida pelas redes Municipal e Estadual, respectivamente. Esse padrão começou a mudar aos poucos. Em 2019 e 2020 essas duas redes públicas ultrapassaram a rede privada.
Sobre o país de origem dos imigrantes, em 2010, havia estudantes provenientes de 227 diferentes nacionalidades. Houve uma queda brusca em 2011, com o registro de apenas 187 países. Após isso, esse número foi aumentando ao longo da década, chegando a 211 em 2019.
Até o meio da década, os principais países com o maior número de imigrantes no território brasileiro eram: Estados Unidos, Bolívia, outros vizinhos sul-americanos, Japão e alguns países do ocidente Europeu como Portugal, Espanha e Itália. Nos últimos anos há um crescimento migratório originário de países em crise econômica e/ou humanitária: Haiti, Venezuela e Bolívia.
5. Considerações finais
Os documentos normativos de direitos humanos reconhecem a educação como direito fundamental, devendo este ser garantido a todos os cidadãos, independente de sua origem e nacionalidade. Como direito fundamental, a educação deve ser garantida por meio de políticas públicas adequadas e diretrizes que possibilitem que imigrantes a acessem, mesmo que a sua situação jurídica no país esteja irregular.
No ordenamento jurídico brasileiro, o direito à educação dos imigrantes está postulado na legislação constitucional e infraconstitucional e, especificamente, na Lei de Migração, Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017, que entrou em vigor 6 (seis) meses após sua publicação oficial.
A partir da análise dos dados referentes às matrículas escolares dos imigrantes, constata-se os epicentros (cidades grandes e capitais) tendem a receber mais imigrantes em relação ao interior dos estados e cidades menores. O número de matrículas também apresenta aumento no final da década, entre 2018 e 2019, se comparado com os demais anos. Uma hipótese é o advento da Lei de Migração que visa proteger direitos fundamentais das comunidades migratórias no Brasil.
Por fim, o número de imigrantes cujas origens são países que enfrentam (ou enfrentaram) crises humanitárias/econômicas/ambientais aumentou nos últimos anos. Este aumento requer cooperação jurídica internacional entre países para que haja planejamento de políticas públicas adequadas para acolhimento destes imigrantes e garantia de seus direitos fundamentais.
Leia mais
Podcast: O papel de comitês e conselhos públicos na integração de pessoas refugiadas
sobre o artigo
Este artigo foi escrito por Ana Clara Fossaluza Vidal Mina (Bolsista FAPESP de Mestrado) e Prof. Dr. Luis Renato Vedovato
Referências
1BRASIL. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6815.htm/>. Acesso em: 25 nov. 2021.
2BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm/>. Acesso em: 25 nov. 2021.
3Ibidem
4Disponível em: </https://odsbrasil.gov.br/objetivo/objetivo?n=4/>. Acesso em: 10 dez. 2021.
5Disponível em: </https://www.ipea.gov.br/ods/ods4.html/>. Acesso em: 29 nov. 2021.
6BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 5 de outubro de 1988. Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm/>. Acesso em: 01 dez. 2021.
7Ibidem
8SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editora. 2005. p.120.
9Ibidem
10SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editora. 2005.
11Ibidem. p. 286.
12BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 5 de outubro de 1988. Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm/>. Acesso em: 01 dez. 2021.
13SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editora. 2005. p. 837.
14BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 5 de outubro de 1988. Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm/>. Acesso em: 01 dez. 2021.
15BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm/>. Acesso em: 25 nov. 2021.
16Ibidem
17Ibidem
18Ibidem
19BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm/>. Acesso em: 25 nov. 2021.
20Ibidem
21BRASIL. Lei nº 13.005 de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Disponível em: </http://pne.mec.gov.br/18-planos-subnacionais-de-educacao/543-plano-nacional-de-educacao-lei-n-13-005-2014/>. Acesso em: 25 nov. 2021.
22Ibidem
23Ibidem
24ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal Dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: < /https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.html />. Acesso em: 30 nov. 2021.
25ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Relativa Ao Estatuto Dos Refugiados. 1951. Disponível em: <https:// https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf/>. Acesso em: 30 nov. 2021.
26Ibidem
27Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/d50215.htm/>. Acesso em: 02 dez. 2021
28ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre Os Direitos Econômicos, Sociais E Culturais. 1966. Disponível em: </ http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf/>. Acesso em: 30 nov. 2021.
29Disponível em: </http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm/>. Acesso em: 02 dez. 2021.
30PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça. Compilação De Instrumentos Internacionais De Direitos Humanos. Timor Leste, 2011. Disponível em: </http://acnudh.org/wp-content/uploads/2011/06/Compilation-of-HR-instruments-and-general-comments-2009-PDHJTimor-Leste-portugues.pdf/>. Acesso em: 30 nov. 2021.
31ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias. 1990. Disponível em: < https://www.oas.org/dil/ />. Acesso em: 30 nov. 2021.
32Ibidem
33ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Convenção Relativa À Luta Contra A Discriminação No Campo Do Ensino. 1960. Disponível em: < https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000132598_por />. Acesso em: 30 nov. 2021.
34ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal Dos Direitos Da Criança. 1959. Disponível em: </http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Crian%C3%A7a/declaracao-dos-direitos-da-crianca.html/>. Acesso em: 30 nov. 2021.
35ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Declaração De Hamburgo Sobre Educação De Adultos. V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, Hamburgo,1997. Disponível em: </ http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-a-Educa%C3%A7%C3%A3o/declaracao-de-hamburgo-sobre-educacao-de-adultos/Imprimir.html/>. Acesso em: 30 nov. 2021.
36Ibidem
37ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Declaração Mundial Sobre Educação Para Todos: Satisfação Das Necessidades Básicas De Aprendizagem. Jomtien, 1990. Disponível em: </https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000086291_por/>. Acesso em: 30 nov. 2021.
38Ibidem
39ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Declaração Americana Dos Direitos E Deveres Do Homem. 1948. Disponível em: </https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.Declaracao_Americana.htm/>. Acesso em: 30 nov. 2021.
40Ibidem
41Ibidem
42 ____________. Decreto Legislativo nº 2, de 1968. Aprova o texto do Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos, denominado “Protocolo de Buenos Aires”. Disponível em: </https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1960-1969/decretolegislativo-2-29-janeiro-1968-349852-protocolo-1-pl.html/>. Acesso em: 05 dez. 2021.
43Ibidem
44ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta Democrática Interamericana. Disponível em: </ http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.htm/>. Acesso: 30 nov. 2021.
45Ibidem
46Ibidem
47ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta Social das Américas. Disponível em: </http://www.oas.org/pt/centro_informacao/default.asp/>. Acesso em: 30 nov. 2021.
48Ibidem
49Disponível em: </ https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/censo-escolar//>. Acesso em: 10 dez. 2021.
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