Ciência Educacional em Rede
Democratização do acesso à educação profissional no Brasil:
Políticas afirmativas no IFSP
INTRODUÇÃO
A partir da Constituição Federal de 1988 debates em torno da democratização da educação pública e de qualidade tomaram espaço no Brasil posto que a educação no País é historicamente marcada pela divisão entre uma educação intelectual, destinada às elites, e a instrumental, reservada às classes trabalhadoras, demarcando a divisão de classes na sociedade.
Desde então, alguns marcos legais apresentam avanços no sentido de buscar reparação de tais desigualdades educacionais, como por exemplo, a implementação de políticas afirmativas nas Universidades e Institutos Federais, de forma a possibilitar o acesso às instituições de ensino de excelência para estudantes das camadas populares, historicamente relegados à escolarização e inserção laboral precária.
A desigualdade social no Brasil tem cor e está imbricada às questões de discriminação racial, oriundas do passado colonial que utilizou a força de trabalho escrava africana por mais de três séculos. Assim, a política de reserva de vagas, popularmente conhecida como cotas, visa reparar o longo período de discriminação e exclusão (Amaro, 2015). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) registrou em 2019, pela primeira vez no Brasil, um maior percentual de matrículas de estudantes negros nas universidades públicas em relação aos estudantes brancos (IBGE, 2019a), indicando progresso em direção à uma sociedade mais igualitária.
Nesse contexto, o presente artigo tem por objetivo verificar a efetivação (ou não) das políticas afirmativas no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), nos cursos de Ensino Médio Integrado ao Técnico Integrado (EMI), que articula ensino geral e profissional em uma única matriz curricular (Brasil, 1996). A excelência dos cursos EMI é amplamente reconhecida pela sociedade o que implica em disputa acirrada por vaga e, consequentemente, exclui ou dificulta o acesso dos jovens das camadas populares (Brasil, 2010).
A partir de uma pesquisa quanti-qualitativa apresentamos um recorte dos resultados obtidos na investigação de doutorado que realizou a caracterização socioeconômica de estudantes do ensino médio profissionalizante no Brasil e na Alemanha. Para tanto, os dados foram coletados por meio de aplicação de questionário eletrônico aos estudantes; análise documental e realização de entrevistas semiestruturadas com profissionais de escolas profissionalizantes em ambos os países.
O presente texto organiza-se em três partes, a saber:
- breve histórico do IFSP;
- apresentação da política de reserva de vagas;
- caracterização socioeconômica dos estudantes do EMI no IFSP, com foco nas categorias cor e renda, e por fim;
- considerações finais.
O IFSP: CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA
O IFSP está localizado no Estado de São Paulo, região Sudeste do Brasil, sendo este o estado mais populoso do Brasil ao concentrar 22% da população nacional, contabilizando 41.262.199 de habitantes em 2010, com estimativa de 46.649.132 pessoas em 2021, segundo censo do IBGE1. O seu IDH é de 0,783, o segundo melhor do País, atrás apenas do Distrito Federal (0,824).
Durante o período colonial a então capitania de São Vicente era produtora de cana-de-açúcar e a população era em sua maioria “pobre e de pequena cultura” constituída por senhores e escravos, majoritariamente, e alguns homens livres (Fonseca, 1986, p. 64).
Em meados do século XIX, com o cultivo do café o estado passa a ser o centro econômico do Brasil, utilizando inicialmente o trabalho escravo na lavoura e, posteriormente, com a abolição da escravatura em 1888, a força de trabalho livre europeia (Barbosa, 2008).
Em 1880 cerca de 75% dos trabalhadores na cafeicultura eram imigrantes, principalmente italianos. O Estado se expandiu a partir da ação dos Bandeirantes que exploravam o território a fim de encontrar terras propícias ao plantio do café. Da mesma forma, para escoar a produção os fazendeiros e o governo investiram na malha ferroviária gerando trabalho e trazendo o desenvolvimento para o estado (Fonseca, 1986; Barbosa, 2008).
Com o capital acumulado do café a industrialização é alavancada em São Paulo, conciliada à força de trabalho dos imigrantes que já haviam vivenciado a revolução industrial em seus países e, assim, contribuíram com sua experiência para a indústria local, pois a “classe média nacional se afastava dos trabalhos manuais” (Fonseca, 1986, p. 71).
Assim, na década de 1930 o Estado de São Paulo era o centro dinâmico do País, característica que se mantem na atualidade (CANO, 2002), já que hoje o estado é responsável por cerca de 31% do da riqueza nacional com um PIB de R$ 6,9 trilhões de reais (IBGE, 2018).
Nesse contexto, observa-se a gênese do que é hoje o IFSP com a fundação das Escolas de Aprendizes Artífices em 1909, destinada a crianças com idade entre 10 e 13 anos que ingressavam para a aprendizagem dos ofícios de tornearia, mecânica, eletricidade, carpintaria e artes decorativas (IFSP, 2019). As crianças eram provenientes de famílias de baixa renda e só eram admitidas mediante a comprovação de não portarem doenças infectocontagiosas. Conforme Fonseca (1986) no primeiro ano de oferta dos cursos foram recebidos 95 estudantes.
Além desta, outras 15 instituições desse tipo foram inauguradas no estado entre 1910 e 1929. Mas será a partir da década de 1930, com a industrialização, que um aumento considerável no número de escolas profissionalizantes é observado, haja vista a necessidade de formação de força de trabalho para a indústria crescente. Entre 1930 e 1939, foram abertas 39 escolas de ofícios, com destaque para os cursos ferroviários estabelecidos em diversas cidades do interior como Rio Claro, Jundiaí e Araraquara, em 1934. Em 1937, a Escola de Aprendizes Artífices de São Paulo passa a se chamar Liceu Industrial.
Com a Reforma Capanema em 1941, o ensino profissionalizante é equiparado ao nível médio e o ingresso nas escolas federais passa a ser realizado por meio de exame de admissão, selecionando, assim, os estudantes com melhor desempenho na prova. Em 1942, a instituição paulista tem a denominação alterada para Escola Técnica de São Paulo, nome que irá permanecer até 1965 quando é acrescentado o termo “Federal”, ficando, assim, Escola Técnica Federal de São Paulo.
Nos anos de 1980, verifica-se o primeiro movimento de expansão da Escola Técnica Federal de São Paulo com a inauguração da unidade em Cubatão (1987) e, depois, em 1996, no município de Sertãozinho.
Mais alterações na denominação da instituição e sua função são realizadas em 1999, com a transformação em Centro Federal de Educação Profissional e Tecnológica de São Paulo (CEFET-SP) que amplia a oferta de cursos para o nível superior, registrando a abertura de tecnólogos, engenharias e licenciatura na capital.
Por outro lado, a instituição deixa de ofertar o ensino médio integrado ao técnico (EMI), em decorrência da promulgação do Decreto 2.208/1997, curso este que desde a década de 1970 se consolidou por sua qualidade de ensino. Como CEFET-SP outras unidades foram criadas, entre 2006 e 2008, primeira fase da expansão das escolas federais empreendida pelo governo Lula: Guarulhos (2006), Bragança Paulista (2006), Salto (2006), Caraguatatuba (2006), São João da Boa Vista (2006), São Carlos (2007), São Roque (2008).
Por fim, em 2008 o CEFET-SP é transformado em Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e efetiva a segunda fase da expansão das escolas da RFEPCT, saltando de 10 campi em 2008 para 31 distribuídos pelo Estado de São Paulo em 2013. A última etapa da expansão ocorreu entre 2014 e 2018, com a implantação de escolas em mais 6 munícipios, totalizante 37 campi em 2018, conforme Figura 1.
Figura 1
Mapa da distribuição dos campi do IFSP em 2018
Fonte: IFSP (2019)2
A oferta de cursos no IFSP deve atender o estabelecido na Lei 11.892/2008, que criou os Institutos Federais, ou seja, 50% da oferta para os cursos técnicos de nível médio, prioritariamente o EMI, 20% para as licenciaturas e 30% para os demais cursos.
Cabe destacar que o IFSP integra a Rede Federal A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT) estabelecida por meio da Lei 11.892/2008, agregando os recém-criados Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF); a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); os Centros Federais de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET-RJ) e de Minas Gerais (CEFET-MG); 25 escolas técnicas vinculadas às universidades federais, e; o Colégio Pedro II. As escolas da RFEPCT são autarquias com autonomia “administrativa, patrimonial, financeira, didático-pedagógica e disciplinar” para criar e extinguir cursos, conforme a demanda local (Brasil, 2008, s/p).
A fundação dos Institutos Federais destaca-se pela oferta verticalizada de cursos profissionalizantes em todos os níveis e modalidades de ensino, do básico à pós-graduação. Assim, os IFs podem oferecer: Cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC), técnicos de nível médio concomitantes, subsequentes e integrados3; licenciaturas; cursos superiores de tecnologia; engenharias e pós-graduação lato e stricto sensu. Ressalta-se que o art. 8º da Lei de criação estabelece que 50% das ofertas de cursos nos IFs devem ser de nível médio, prioritariamente integrado. Os cursos de licenciatura devem representar 20% da oferta e os outros 30% dos cursos ser oferecidos conforme as demandas locais por qualificação profissional (Brasil, 2008; 2010).
A estrutura organizacional dos Institutos Federais é multicampi, sendo gerenciada por uma reitoria por instituição, composta por um reitor e pró-reitores e cada campus por um diretor e seus respectivos gerentes e coordenadores. A forma de escolha do reitor e diretores é democrática, realizada por meio de eleição do qual participam servidores docentes, técnico-administrativos e estudantes.
Conforme o texto legal, os IFs têm por principais finalidades: a formação e a qualificação profissional dos cidadãos; constituir-se em centro de excelência na oferta do ensino de ciências; atuar na formação pedagógica dos docentes das redes públicas de ensino; realizar programas de extensão; implantar a pesquisa aplicada; e, incentivar a produção cultural, o empreendedorismo, o cooperativismo e o desenvolvimento científico e tecnológico. Ou seja, o leque de atuação dos IFs perpassa os processos de ensino-aprendizagem, abrangendo o tripé ensino, pesquisa e extensão, se equiparando às universidades federais nesse aspecto, com o objetivo de atender às demandas socioeconômicas das regiões em que atuam. Outra característica importante a se destacar é o papel da instituição como acreditadora e certificadora de competências profissionais, ou seja, ela está apta a avaliar e certificar conhecimentos tácitos e outros saberes práticos adquiridos pelo indivíduo em ambientes diversos como no trabalho (Brasil, 2008; Silva, 2009).
A partir da criação dos IFs, segundo Silva e Terra (2013), foi possível a expansão da instituição pelo interior do Brasil, atingindo regiões que ainda não contavam com escolas federais. A expansão dos IFs proporcionou o estreitamento territorial, para se atingir os objetivos de:
Conforme Moreschi e Filippim (2016) os Institutos têm por função o estabelecimento de políticas públicas que consolidem a educação profissional não apenas como instrumento de formação de força de trabalho, mas do sujeito ativo na sociedade pela inclusão social e o desenvolvimento econômico regional. Tal inclusão se daria, principalmente, pelo estabelecimento dos cursos de ensino médio integrado (EMI), retomando a excelência de ensino das antigas Escolas Técnicas Federais, reconhecida pela comunidade acadêmica e civil, nas décadas de 1970 e 1980 (Ferretti, 1997; Pires, 2010).
Destaca-se a centralidade da oferta do EMI no desenho da política institucional dos Institutos Federais. Os seus princípios e fundamentos foi apresentado no documento base denominado “Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado ao Ensino Médio” redigido a partir de debates sobre a concepção de ensino médio integrado, baseado em seminários realizados entre os anos 2003 e 2004, com a participação de pesquisadores do campo trabalho e educação, profissionais de escolas profissionalizantes e representantes da sociedade civil (Brasil, 2007).
A constituição histórica da educação brasileira pauta-se no desprezo pelo trabalho manual, sob o qual o sistema educacional nacional foi erigido apartando a educação geral da profissional, reproduzindo a distinção de classes no Brasil (SAVIANI, 2003). O desenvolvimento de uma política com vistas a superar essa dicotomia é a proposta do EMI, pautado no modelo de escola politécnica e unitária, retomando a discussão proposta por estudiosos e sociedade civil organizada na Constituinte em 1987 (Ramos, 2014).
A implantação do EMI nessas bases requeria uma instituição de abrangência nacional, que pudesse levar a concepção do EMI para todas as regiões do País. Assim, a criação e a expansão dos Institutos Federais confluíram com tais objetivos, possibilitando a efetiva implementação desses cursos.
Compreende-se que o princípio de integração é basilar na proposta curricular do EMI, pois o EMI é considerado pelos estudiosos da temática o caminho possível para se chegar à politecnia (Frigotto et al, 2012).
Para Kuenzer (2009, p. 50) a integração pressupõe a necessária relação entre a ciência, a cultura e o trabalho em articulação com os conhecimentos gerais e técnicos, das disciplinas que compõem o currículo do EMI, de formar a fundamentar “os processos sociais e produtivos contemporâneos, as formas tecnológicas, as formas de comunicação e os conhecimentos sócio-históricos”, tendo como foco principal o trabalho, já que é a partir dele que ocorrem as práticas sociais e produtivas.
Da mesma forma, Ramos (2012) afirma que a construção de um currículo integrado visa à superação da distinção entre a formação para o trabalho ou para a cidadania, considerando a formação humana integral como objetivo da integração. A formação humana integral compreende a formação completa do sujeito, omnilateralmente, em todas as dimensões da vida e que irá constituir o cidadão pleno, ciente de seus direitos e deveres e consciente de seu lugar na sociedade (Ciavatta, 2012).
O princípio da integração daria organicidade ao curso EMI, já que se considera que da parte propedêutica se conheceria o saber socialmente construído, a partir de eixos temáticos relacionados ao trabalho, à ciência e à cultura, os quais devem permear todo o currículo e todas as disciplinas, formando assim um conjunto, pois como descrito no documento “o conhecimento contemporâneo guarda em si a história da sua construção” (Brasil, 2007, p. 50).
Retomando os dados do IFSP, verificou-se na Plataforma Nilo Peçanha, quer reúne informações estatísticas sobre a RFEPCT, que em 2018 as matrículas no IFSP estavam distribuída da seguinte forma (TABELA 1):
Tabela 1
Distribuição de matrículas no IFSP, segundo modalidade de curso (2018)
Fonte: Plataforma Nilo Peçanha (2019).
Elaboração própria
Os dados da Tabela 1 indicam que o IFSP não atende à proporção de oferta prevista em Lei, já que as matrículas em cursos técnicos representam pouco mais de 1/3 do total, quando deveriam ser a metade, de acordo com a legislação vigente. Entre os cursos de nível médio, o EMI totaliza 44% das matrículas, concomitantes e/ou subsequentes somam 54% e o PROEJA 2%. Assim, a prioridade do EMI na oferta de cursos no IFSP ainda não é realidade4.
Verificamos na pesquisa que o EMI ainda não é uma prioridade no IFSP, o que nos leva a questionar o caminho que a comunidade do IFSP vislumbra para o futuro e os obstáculos para implementação dessa política dentro de uma instituição que deveria impulsionar sua implementação.
POLÍTICA DE RESERVA DE VAGAS
A política de reserva de vagas, também conhecida como cotas, foi estabelecida por meio da Lei nº 12.711/2012 e completou 10 anos em 2022, o que justifica um balanço dos avanços e desafios proporcionado pela implementação das políticas afirmativas no Brasil, em especial no IFSP.
A partir desta Lei fica determinado que ao menos 50% das vagas dos cursos ofertados nas instituições de ensino federal, como o IFSP, por turno e curso, sejam resguardadas para estudantes provenientes do ensino fundamental realizado integralmente em escola pública. Entre essas, deve-se alocar 50% para atender às famílias com renda inferior a um salário mínimo e meio per capita, cujo valor em 2019 era de R$ 1.487,00, ficam estabelecidas cotas para as pessoas que se autodeclaram de cor/raça preta, parda ou indígena e, também, às pessoas portadoras de necessidades especiais, observando-se a proporção dessas populações no estado, conforme dados do IBGE.
Respeitada a autonomia institucional e o atendimento à legislação, o IFSP reserva 50% das suas vagas em atendimento à referida Lei e as demais são destinadas à ampla concorrência. A política de reserva de vagas trata de correção de questões históricas que apartaram estratos da sociedade brasileira da educação pública de qualidade como no acesso a cursos superiores ou o EMI, por exemplo. Assim, conforme Baniwa (2013) e Ern (2016) essa política é um passo importante na garantia de igualdade no acesso aos cursos ofertados por Universidades e Institutos Federais para as populações indígenas, negras e pardas e de baixa renda. Os autores afirmam que as políticas afirmativas devem ser apenas um passo no caminho para a inclusão social dessas populações e no combate à discriminação.
Nesse âmbito, o IFSP desenvolve projetos como o do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) que visa promover ações de valorização das identidades étnico-raciais em respeito às Leis 10.639 / 2003 e 11.645 / 2008. As ações são diversificadas com respeito à autonomia institucional e podem ser implementadas por meio de eventos acadêmicos, grupos de estudos, ações de conscientização e combate à discriminação.
Da mesma forma, as políticas de reserva de vagas abrangem o acesso de pessoas portadoras de deficiências na educação profissional, de forma a possibilitar a integração social via escola e trabalho. No entanto, por meio das respostas ao questionário eletrônico aplicado aos estudantes do EMI no IFSP constatamos que apenas 4% dos respondentes são portadores de algum tipo de deficiência, como deficiência visual, auditiva e cognitiva.
A partir da caracterização socioeconômica dos estudantes do EMI do IFSP, buscou-se verificar a efetivação das políticas afirmativas na instituição ao averiguar se a proporção de estudantes provenientes de escolas públicas e cotistas condiz com o número de vagas reservados, o que passamos a analisar a seguir.
A QUESTÃO RACIAL NO IFSP: AVANÇOS E DESAFIOS
Sobre a questão racial no Brasil, o passado de escravidão dos negros contribuiu para a discriminação desses devido a cor da pele e mesmo após a abolição ocorrida em 1888, atribui-se a essa parte da população uma inferioridade intelectual e indisposição para o trabalho como características próprias da raça. Resultante dessa convicção optou-se pela imigração europeia como forma de suprir a força de trabalho necessária para o processo produtivo em desenvolvimento no início do século XX e, consequentemente, branquear a população brasileira. Assim, a população negra e mestiça foi isolada em espaços periféricos e destinada a trabalhos precários, basicamente na área de serviços (Ianni, 2004).
A forma privilegiada de ascensão social dessa camada da população é a formação escolar, já que historicamente aos negros brasileiros reservava-se a posição de proletários e trabalhadores domésticos na divisão social do trabalho. Dessa maneira, eles ocupavam posições menos qualificadas e para alcançar patamares econômico e social mais alto, havia duas possibilidades: o “branqueamento” por meio da união com brancos, pois quanto mais claro o tom da pele, mais aceito socialmente em círculos de brancos e de classes mais elevadas, e; a distinção pela obtenção de instrução escolar de nível médio e, raramente, superior (Ianni, 2004).
Para Munanga (2003) os conceitos de raça e etnia diferenciam-se de acordo com o País, assim brancos, pardos e negros são percebidos de maneiras distintas no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo. O conceito de raça para o autor carrega um significado sociológico e um histórico de dominação e poder de um povo sobre o outro, principalmente, pautado nas distinções de cor que prevaleceram até meados do século XX, com explicação biológica de superioridade da raça branca sobre as demais, o que justificaria seu domínio sobre as outras e a segregação e desigualdades sociais e raciais dela decorrentes. Já etnia é um conceito mais amplo, que abarca outras características além da cor da pele, como o compartilhamento entre um grupo de indivíduos de uma cultural comum, a mesma língua, território, hábitos, mitos etc.
Ressalta-se que ao contrário do observado na América do Norte, no Brasil disseminou-se a crença da democracia racial, o que concorreu para dissimular a discriminação racial existente e retardar a discussão de implementação de políticas afirmativas como forma de inserção social dos pretos, pardos e outras etnias, o que só compôs a agenda de debate das políticas públicas após a redemocratização do País no final da década de 1980 (Munanga, 2003).
Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Continua realizada pelo (IBGE, 2022) a população brasileira é composta por 43% de pessoas brancas, 47% que se autodeclaram de cor parda e 9,1% pretas. A denominação negra agrega pessoas de cor parda e preta e, assim, pode-se afirmar a partir da nomenclatura e dados do IBGE que 56,1% da população brasileira é negra. Na distribuição da população conforme as unidades federativas verifica-se em São Paulo a maioria de pessoas brancas (58,4%), seguida das pessoas pardas (32,8%) e pretas (7,2%) (IBGE, 2022). Observa-se a predominância de pessoas brancas no estado, acima da média nacional.
O censo escolar 2018 informa que 40,1% dos matriculados no ensino médio no País se autodeclaram pretos ou pardos, os brancos conformam 30% dos estudantes, indígenas 0,5% e amarelos 0,4%. Já em São Paulo, 31,2% dos estudantes de nível médio se autodeclaram pretos e pardos, 67,9% brancos, índigenas são 0,2% e amarelos 0,7% (INEP, 2019).
Já no IFSP, conforme as respostas ao questionário eletrônico aplicado aos estudantes do EMI constata-se a presença 34,6% de pretos e pardos, número abaixo do apresentado pelo IBGE na composição da população do Estado (40%), porém levemente acima do índice apontado pelo Censo Escolar do Inep para os estudantes de nível médio. Os respondentes que se autodeclaram de cor branca são 61,3% da amostra, inferior aos índices de estudantes brancos do INEP. Já os estudantes de cor amarela (3,5%) e indígenas (0,6%) apresentam percentuais superiores aos observados no Censo Escolar.
Constata-se que o IFSP caminha em direção à democracia racial a partir da implementação das políticas de cotas. Contudo, ainda há o crivo do processo seletivo que seleciona os melhores estudantes entre os cotistas, deixando uma parcela significativa à margem da política educacional. Perguntamos aos participantes da pesquisa se ingressaram no EMI por meio da reserva de vagas: 55,4% afirmaram opção pelo ingresso por cotas, indicando que a política se efetiva no IFSP. Sobre a renda dos estudantes verificamos que o número de ingresso por cotas sociais (baixa renda) é ainda restrito, menos de 10% da amostra, indicando que há se avançar na política para se alcançar as camadas populares. Nesse contexto, buscamos identificar a renda familiar dos participantes da pesquisa.
RENDA: DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO ÀS CAMADAS POPULARES?
De acordo com a síntese de indicadores sociais do IBGE (2019b) 58,5% da renda dos brasileiros é provenientes do emprego formal, sendo a média do rendimento real do trabalho de R$ 2.163,00. Por conseguinte, o relatório aponta discrepâncias na distribuição da renda por cor e sexo, já que pessoas brancas perfazem 65,4% daqueles com emprego formal, enquanto pretos e pardos são 52,7%. Além disso, pretos e pardos recebem salários 42,5% menores do que brancos e são a maioria quando se trata da subutilização no trabalho (29% contra 18,8% dos brancos). Enquanto 68,6% dos brancos ocupam cargos de chefia, apenas 29,9% de pretos e pardos ocupam a mesma posição. Essas situações refletem nas condições de vida da população, uma vez que 32,9% de pretos e pardos vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil, os brancos na mesma condição são 15,4%. Da mesma forma, os percentuais sobre as diferenças salarias por sexo refletem as desigualdades sociais no País, pois os homens recebem em média 27% a mais que as mulheres.
Mas a maior diferença é observada entre os rendimentos do trabalho formal e informal, já que pessoas no mercado de trabalho informal ganham pouco menos da metade do que aquelas com emprego registrado em carteira.
Em São Paulo, o rendimento médio do trabalho principal é R$ 2.800,00 e o rendimento per capita R$ 1.845,00 situando o Estado acima da média nacional. Na pesquisa por nós empreendida, buscou-se averiguar a renda mensal bruta das famílias dos respondentes, considerando que a renda mensal bruta seja a soma de todo o rendimento que a família recebe, seja ele de salário, recebimento de pensão, aluguéis, “bicos”, programas sociais do governo etc.
Verificou-se a diversidade nos rendimentos das famílias dos respondentes entre 1 e 10 salários mínimos, indicando que a instituição recebe uma gama de estudantes provenientes de diferentes realidades econômicas, mas situadas, sobretudo entre aquelas com rendimento mensal dentro da média estadual ou acima. Entre as famílias em vulnerabilidade social, constatamos que do conjunto dos dados cerca de 3,3% vivem com até um salário mínimo e 9,4% com renda mensal abaixo de 2 salários mínimos. No outro extremo, cerca de 3,8% das famílias têm rendimentos superiores a 10 salários e 1,5% dos respondentes provém de famílias com renda acima de 20 salários. Na comparação entre os rendimentos familiares dos estudantes do interior e da capital, observa-se que a maior parte dos respondentes da capital vem de famílias com rendimentos entre 2 e 10 salários mínimos (62,4%), e os estudantes do interior de famílias com renda mensal na faixa de 1 a 5 salários (74,9%).
Pode-se apreender a partir da análise dos rendimentos familiares a diferença entre os estudantes do interior e da capital que pode ser explica, em partes, por maiores salários praticados na capital e, também, pelo reconhecimento da excelência de ensino e tradição da escola em São Paulo que acarreta em maior relação candidato/vaga no processo seletivo para ingresso no EMI.
Quanto a origem do principal rendimento familiar, a maioria é de trabalho formal com carteira assinada (48,8%) e do setor público (15,5%), indicando que de cada 10 respondentes 6 provém de famílias com vínculos empregatícios com direitos trabalhistas e, assim, certa proteção social.
Cabe destacar que no conjunto da amostra a maior parte das famílias é composta por 4 pessoas residentes na área urbana. Quanto ao tipo de moradia, os respondentes vivem em casa própria quitada (59,3%), alugada (17,6%) e própria financiada (14,8%). É preciso ponderar o sentido do imóvel próprio, sobretudo a partir de programas sociais destinados à moradia da população de baixa renda, a exemplo do “Minha Casa, minha vida” implementado em 2009, com o objetivo de fornecer subsídios, como juros abaixo do praticado no mercado para o financiamento do imóvel próprio para famílias com renda de até R$ 4.650,00.
A partir dos dados de renda, podemos afirmar que os estudantes do IFSP são prioritariamente de famílias com renda entre 2 e 10 salários mínimos, com vínculo empregatício formal ou no serviço público, possuem casa própria e contam com 4 membros na família.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto buscou apresentar um recorte de uma pesquisa de doutorado que investigou as características socioeconômicas de estudantes do ensino médio profissionalizante no Brasil e na Alemanha, focalizando aqui os resultados referentes aos dados coletados no IFSP, a fim de verificar a implementação das políticas afirmativas, em especial do sistema de cotas, no curso EMI.
Constatou-se a partir das características dos estudantes do IFSP que são jovens entre 15 e 17 anos, ingressantes no EMI em 2018, do sexo masculino, oriundos da escola pública e que se autodeclaram de cor preta ou parda. No geral, estudam em tempo integral ou no turno vespertino, dificultando, assim, a conciliação com o trabalho. São provenientes de famílias com renda entre 2 e 10 salários mínimos, com emprego formal e casa própria e 4 pessoas na família, e pais com escolaridade de nível médio. Esses estudantes enxergam no EMI uma oportunidade de acesso ao ensino superior.
Sobre as políticas afirmativas, destaca-se que é importante avanço na democratização do acesso aos cursos EMI ao reservar ao menos 50% das vagas aos estudantes oriundos da rede pública, com cotas sociais (baixa renda), raciais e para pessoas com deficiências. Em contrapartida, pesquisas sobre formas mais democráticas de ingresso se fazem necessárias, devido ao acirrado processo seletivo no EMI e que prioriza a seleção por mérito.
Constata-se um ligeiro progresso no sentido de inclusão racial, por meio da pesquisa empírica, já que há entre os respondentes uma parcela de estudantes que se declaram negros e pardos (34,6%) embora ainda abaixo dos dados da população do estado (40%), mas acima dos índices de estudantes matriculados no ensino médio paulista (31,2%).
No que se refere aos cotistas que ingressaram por cotas sociais (baixa renda) esse número é considerado baixo (5,3%), já que o Brasil é um dos países com maior desigualdade mundial (79º, de acordo com a ONU). Mas, segundo os entrevistados houve uma mudança no perfil dos estudantes já que antes da implementação da política de reserva de vagas havia poucos estudantes negros na instituição e, agora, compõe mais de um terço do corpo discente. Assim, indicamos a importância de prosseguir e incentivar a implantação das políticas afirmativas em escolas e universidades públicas brasileiras.
Considerando o princípio de democratização do acesso aos cursos EMI o contingente de estudantes fora da escola ou com formação de nível médio de baixa qualidade, indica-se a necessidade de aprimorar as políticas de ingresso, bem como, de expansão do ensino médio profissionalizante, para se alcançar a almejada educação pública de qualidade para um maior contingente de jovens. Compreende-se que para atender os estudantes das camadas populares um projeto de país é necessário, que passa não somente pela educação, mas o extrapola. No entanto, não se pode desconsiderar o avanço que as políticas públicas educacionais, bem como, as políticas afirmativas de reserva de vagas, promoveram no Brasil dentro da conjuntura atual.
sobre o artigo
Este artigo foi escrito por Dr. Cíntia Magno Brazorotto.
Referências
Amaro, S. (2015). Racismo, igualdade racial e políticas de ações afirmativas no Brasil. EDIPUCRS.
Baniwa, G. (2013). A Lei de cotas e os povos indígenas: mais um desafio para a diversidade. Fórum. Cadernos de pensamento crítico, CLACSO, FLACSO Brasil.
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Brasil. Ministério da Educação. (2008). Lei 11.892 de 29 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências. http://bit.ly/2kH374x.
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3Cursos técnicos de nível médio: 1) integrado: ensino médio regular e profissional organizados com currículo e matrícula única, na mesma instituição; 2) concomitante: com separação entre ensino médio e técnico, com matrícula e currículo distintos; e, 3) subsequente: realizado após a conclusão do ensino médio regular.
4Destacamos que para a presente pesquisa utilizamos como fonte base os dados informados na Plataforma Nilo Peçanha. Contudo, verificamos que os documentos oficiais do IFSP, como o PDI 2019-2023 e o Relatório de Gestão 2018, afirmam que a instituição se aproxima das proporções de oferta de cursos estabelecidas na Lei de criação dos IFs (52,1% Técnico; 17,8% licenciatura; 29,8% outros, 1,3% EJA) (IFSP, 2019). A hipótese aqui levantada é que a instituição não contabiliza as matrículas dos cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) nos dados apresentados. Problematizamos que isso modifica sensivelmente os números institucionais dificultando uma análise fidedigna do desenvolvimento e aplicação da política educacional no IFSP, em especial do EMI.